16 de abr. de 2008

Cantiga

António Botto

Se os meus olhos te incomodam
Quando estou na tua frente
Desde já posso arrancá-los
Para te amar cegamente.

Seja o que for, não me importa,
Mas sei que não é por mim
Que os teus nervos adoecem
E andam sem governo, e assim...
Outra vida, não a minha,
Outro abraço e outro beijo
Te perturba e te desvaira
- Não mintas!, porque eu bem vejo!
Mas, continua, vai indo
Sim, vai até te cansares!,
Para ver o que tu contas
Se algum dia me voltares!

Não te incomodes comigo.
Nas lágrimas também há
Satisfação e conforto;
Nem tudo o que alguém nos mata
Fica perdidou ou é morto.
O coração ressuscita
Muita coisa que julgámos
Esquecida para sempre
Nas sombras da realidade;
O coração tem uma vida
Que pode tudo no mundo,
Chama-se apenas: Saudade!

Com ela é que eu vou vencendo
Este grande desalento
Que apaga os gritos da carne
Em falas do pensamento!
Agarro-me às sensações
Que foram o dia de ontem
- Felicidade sem névoa
Dos nossos dias felizes!
E fico a chorar de raiva
Por não ver bem a mentira
Que há nos silêncios marcados
De tudo quanto me dizes!

Acabou-se. E tu desculpa.
Falei, agora, e não digo
Nunca mais uma palavra
Acerca do nosso amor.
Fica por lá se quiseres
Até mudares ou seres
Numa nova reacção,
Límpida, pura, fremente,
Outra tortura presente
Na minha humilde paixão!
Outro céu, outro destino,
Ou outra condenação!

Foto: Marie... de Jose Duarte

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