28 de jan. de 2010

De que me rio eu?... Eu rio horas e horas


António Patrício



De que me rio eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.


Eu rio porque tenho medo, um terror vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressago
nem a das coisas mudas a chorar.


Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.



Dez réis de esperança


António Gedeão

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

foto: Não te dou o meu pente de Luís Lobo Henriques

Gota de água



António Gedeão

Eu,  quando choro, não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
Em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
Mas o choro não é meu.

Foto: Desencontramentos #2 de João Castela Cravo

14 de jan. de 2010

Tecendo o Amanhã


João Cabral de Melo Neto


1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.



De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.



2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.



A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Foto: No descanso de Vitor Azinheira




13 de jan. de 2010

Talvez






Pablo Neruda 


 Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és

E desde então és
sou e somos...
E por amor

Serei... Serás...Seremos...

Foto: Não sei a autoria

8 de jan. de 2010

Filosofia



Ascenso Ferreira

Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!


Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Foto: Desencontramentos #2 de João Castela Cravo


SIMPLES


Auta de Souza


Eu amo as minhas lembranças,

Minhas saudades e dores,

Assim como amo as crianças,

Os passarinhos e as flores.


A criancinha que chora

É como o lírio ao nascer:

Um raio de sol implora

Para que chegue a viver.


E o raio de sol que damos

À pobre criança é o beijo...

O lábio que nós beijamos

Ressoa como um harpejo.


O pequeno passarinho

Esmola também o amparo:

Ai! guardemos o seu ninho

Como o tesouro mais caro.


As flores - no vil degredo

Da terra - vivem um dia!

Vamos levá-las bem cedo

À doce Virgem Maria.


Terão assim melhor sorte

Quando forem a murchar...

As rosas querem a morte

Que as desfolha ao pé do altar.


Ai! tudo que é fraco e triste

Precisa de amparo e luz...

E nada no mundo existe

Tão triste como uma Cruz.


Por isso, adoro as lembranças,

As amarguras e as dores,

Assim como amo as crianças,

As andorinhas e as flores.

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