3 de abr. de 2008

Apontamento

Álvaro de Campos

A minha alma partiu-se
como um vaso vazio.
Caiu pela escada
excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços
do que havia louça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha
quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos
sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda
como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se
do parapeito da escada.
E fitam os cacos
que a criada deles fez em mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos
absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos,
não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes
à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria
atapetada de estrelas.
Um caco brilha,
virado do exterior lustroso,
entre os astros.
A minha obra?
A minha alma principal?
A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente,

pois não sabem por que ficou ali

Foto: Fall in


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