4 de set. de 2010

O menino que carregava água na peneira

Manoel de Barros
Eu tenho um livro sobre águas e
meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio do que o do cheio.
Falava que os vazios são maiorese até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira,
com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviço, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus
despropósitos




Foto: Book_Of_Oblivion_by_nairafee

Um comentário:

AC disse...

Sem dúvida uma bela definição de poeta e poesia.

Bom final de semana

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