26 de jan. de 2009

Soneto do impossível

Abgar Renault

Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.

Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.

Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.

Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.



Foto: 001 de Bubbles

Negro Amor


Composição: Bob Dylan / Versão Péricles Cavalcante e Caetano Veloso


Vá, se mande, junte tudo que você puder levar
Ande, tudo que parece seu é bom que agarre já
Seu filho feio e louco ficou só
Chorando feito fogo à luz do sol
Os alquimistas já estão no corredor
E não tem mais nada negro amor

A estrada é pra você e o jogo é a indecência
Junte tudo que você conseguiu por coincidência
E o pintor de rua que anda só
Desenha maluquice em seu lençol
Sob seus pés o céu também rachou
E não tem mais nada negro amor
E não tem mais nada negro amor

Seus marinheiros mareados abandonam o mar
Seus guerreiros desarmados não vão mais lutar
Seu namorado já vai dando o fora
Levando os cobertores? e agora?
Até o tapete sem você voou
E não tem mais nada negro amor
E não tem mais nada
Negro amor

As pedras do caminho deixe para trás
Esqueça os mortos eles não levantam mais
O vagabundo esmola pela rua
Vestindo a mesma roupa que foi sua
Risque outro fósforo, outra vida, outra luz, outra cor
E não tem mais nada negro amor

Os Argonautas




Caetano Veloso (1978)

O barco
meu coração não aguenta
tanta tormenta, alegria
meu coração não contenta
o dia
o marco
meu coração
o porto
não


navegar é preciso
viver
não é preciso


o barco
noite no teu tão bonito
sorriso solto perdido
horizonte, madrugada
o riso
o arco
da madrugada
o porto
nada

navegar é preciso
viver
não é preciso

o barco
o automóvel brilhante
o trilho solto, o barulho
do meu dente em tua veia
o sangue
o charco
barulho lento
o porto
silêncio

navegar é preciso
viver
não é preciso


Foto: Aguarela no sado...de Jose Canelas

Todo o sentimento

Cristóvão Bastos - Chico Buarque/1987


Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo
Da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar
E urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo uma outra vez


Prometo te querer
Até o amor cair
Doente
Doente
Prefiro então partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado
Ao lado teu

Foto:Se todos pudessemos andar de mãos dadas... de Landa




20 de jan. de 2009

Ausência


Nuno Júdice, in Pedro Lembrando Inês


Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-te de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

R E S Í D U O S

(Carlos Drummond de Andrade, em “Rosa do Povo”,Ed. Aquilar, 1964, “Obra Completa”, pág. 163)

“De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
Ficou um pouco.


Ficou um pouco de luz
Captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
De ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pé
De que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço vazio de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
No queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio
Um pouco ficou, um pouco
Nos muros zangados,
Nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
No pires de porcelana,
Dragão partido, flor branca,
De ruga na vossa testa,
Retrato.
Se de tudo fica um pouco,
Mas por que não ficaria
Um pouco de mim? No trem
Que leva ao norte, no barco,
Nos anúncios de jornal,
Um pouco de mim em Londres,
Um pouco de mim algures?
Na consoante?
No poço?

Um pouco fica oscilando
Na embocadura dos rios
E os peixes não o evitam,
Um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco,
Não muito: de uma torneira
Pinga esta gota absurda,
Meio sal e meio álcool,
Salta esta perna de rã,
Este vidro de relógio
Partido em mil esperanças,
Este pescoço de cisne,
Este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco;
De mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
De tudo ficou um pouco;
Vento nas orelhas minhas,
Simplório arroto, gemido
De víscera inconformada,
E minúsculos artefatos:
Campânula, alvéolo, cápsula
De revólver...de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
E abafa
O insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
E sob as ondas ritmadas
E sob as nuvens e os ventos
E sob as pontes e sob os túneis
E sob as labaredas e sob o sarcasmo
E sob a gosma e sob o vômito
E sob o soluço, o cárcere, o esquecido
E sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
E sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
E sob tu mesmo e sob teus pés já duros
E sob os gonzos da família e da classe,
Fica sempre um pouco de tudo.”



Foto: Unclaimed (?)

Leve do livro Poemas Completos de Alberto Caeiro


Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


" Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leva passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
em procuro sabê-lo."


Foto: Flores(não sei de quem é a autoria)

18 de jan. de 2009

Case-se comigo

Liminha & Vanessa da Mata

Case-se comigo
Antes que amanheça
Antes que não pareça tão bom pedido
Antes que eu padeça
Case comigo
Quero dizer pra sempre
Que eu te mereço
Que eu me pareço
Com o seu estilo
E existe um forte pressentimento dizendo
Que eu sem você é como você sem mim
Antes que amanheça, que seja sem fim
Antes que eu acorde e seja um pouco mais assim
Meu príncipe, meu hóspede, meu homem, meu marido
Meu príncipe, meu hóspede, meu marido

Foto: véus e casamentos de Paulo Cesar

Lendo Fernando Pessoa...



Fernando Pessoa


"Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria,
Só porque foi e voou,
E hoje já é outro dia."



Foto: Autumn walk de Francisco Veiga




A Sombra de um Jatoba

Toquinho

Raios de sol na varanda
verde cobrindo o jardim
poder sentir a vida espreguiçar
com o cheiro da madrugada
dama-da-noite, jasmim
olhar no céu estrelas pra contar

Ter meus amigos comigo
quem amo me amando, sim
longe do amor de quem nos finge amar
Ver na manhã de um domingo,
meu filho sorrir pra mim
depois dormir à sombra de um jatobá

Poucas coisas valem a pena
o importante é ter prazer
Longe de mim a inveja e a maldade escondidas na vida
Hoje estamos nós em cena e não há tempo a perder
pois tudo acaba mesmo sempre em despedida


Foto: Friends de Alexandre Bravo


Graciliano Ramos em Memórias do cárcere

"(...) Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas."


Foto: Love in blue de gonçalo Franco

17 de jan. de 2009

Overdose


Alice Ruiz e Alzira Espíndola


Já notou que eu te amo
ou você pensa
que toda vez que eu ligo
é por engano?


já sacou que é meu vício
minha droga
meu barato
ou vou ter que curtir a rebordosa
em algum hospício?


pra me deixar normal
só uma overdose de você
pra me pirar legal
só uma dose dupla desse mal



Foto: Hide'n' Seek de Graçaa Loureiro

Clarice Lispector


Clarice Lispector, "Água Viva"


"Para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo é com delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites, fronteiras com o quê? sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando. Estou cheia de acácias balançando amarelas, e eu que mal e mal comecei a minha jornada, começo-a com um senso de tragédia, adivinhando para que oceano perdido vão os meus passos de vida. E doidamente me apodero dos desvãos de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca."

Foto: Framed de J. P. Sousa

15 de jan. de 2009

Mário Quintana


(Mário Quintana - 80 Anos de Poesia, 1986)

Fere de leve a frase... E esquece... Nada

Convém que se repita...

Só em linguagem amorosa agrada

A mesma coisa CEM MIL VEZES dita.’’


Foto: Unidos pelo sentimento de Marta Ferreira

14 de jan. de 2009

Soneto XLIV - Sábras que no te amo y que te amo

Pablo Neruda (1904-2004)


Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo e
por isso te amo quando te amo



Texto do livro "CIEN SONETOS DE AMOR "Soneto XLIV "Sábras que no te amo y que te amo"de Pablo

Foto: SweetDreams de Graça Loureiro

9 de jan. de 2009

A Ana


Ana Cañas / Alexandre Fontanetti


A Ana disse ontem
A Ana ficou triste

A Ana também leu
A Ana não existe

É a Ana insiste
A Ana não consegue
A Ana inventou
Ela também merece

A Ana é azeda
Mas é doce quando é doce
A Ana é azeda
Mas muito doce quando é doce

A Ana nada sabe
A Ana sempre canta
A Ana me enrola
A Ana me encanta

A Ana se pintou
A Ana não limpou
A Ana que escreveu
A Ana que esqueceu

Foi a Ana que fez
Foi a Ana que foi
Foi a Ana em fá
Foi a Ana, foi

A Ana ama
A Ana odeia
A Ana sonha
A Ana canta

Graciliano Ramos

Graciliano Ramos

"Comovo-me em excesso,
por natureza e por ofício.
Acho MEDONHO alguém viver sem paixões."

Foto: Olhos vendados (naao sei de quem e a autoria da foto)




Mário Quintana

Mário Quintana

"Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava
."


Foto: Carinho (Nao sei a autoria)

Benoîte Groult,no livro “Um toque na estrela”

Benoîte Groult,no livro “Um toque na estrela”

“No início,cada indivíduo tinha sua cota de destino. A fatalidade, como se diria (…). Triste perspectiva para mim, que amo o improviso e as fendas da existência por onde se infiltram os milagres. É por isso que adoro embaralhar as cartas. Acender a fagulha de um olhar para fazer nascer o amor onde não se esperava”

Foto: waiting de youngdoo

Fernanda Young

Fernanda Young

"...Olha no espelho,
recupera o fio da
Meada
Ela sabe quem é. Ela não é Yeats,
não é Rike,
Neruda,
Blake,
Drummond.
Ela é mulher,
poeta que volta no tempo enquanto dorme,
revendo o amor que acreditou..."

Foto: Fanfan de i am who i am


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