25 de fev. de 2008

Amor I love You

(...)tinha suspirado, tinha beijado o papel devotadamente!
era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades,
e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas,
como um corpo ressequido que se estira num banho tépido;
sentia um acréscimo de estima por si mesma,
e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente,
cada passo conduzia a um extase,
e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!!!

(primo basílio- Eça de queiróz)

Arte de amar


Manuel Bandeira


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação
não noutra alma
só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.


Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
porque os corpos se entendem, mas as almas não.



Foto: Saudade de José Vaz Meneses

Carpinejar Mais uma vez


Fabricio Carpinejar


Ela escolheu envelhecer comigo.
Pode ter sido compaixão pela
minha falta de jeito,
acaso ou acidente
dos cabelos lisos.

Ela escolheu envelhecer comigo.
Pode ter sido amor,
Simpatia ou alguma
perda fora de mim
que despertou suas perdas.
Pode ter sido a idade que pedia um marido,
sei lá, o marido pedia uma idade.
Ela escolheu e aqui fez sua noite.
Suas mãos se toldam em uma tenda
quando alivia minha barba
de outros odores que não o seu.


Foto: Depois quando o sol se esconder … que será, que será que vai ser de Armando Cardoso



As cartas de amor....


Fabricio Carpinejar


As cartas de amor
deveriam ser fechadas
com a língua;
Beijadas antes de enviadas.
Sopradas. Respiradas.
O esforço do pulmão
capturado pelo envelope,
a letra tremendo
como uma pálpebra.
Não a cola isenta, neutra,
Mas a espuma, a gentileza,
a gripe, o contágio.
Porque a saliva
acalma um machucado.

As cartas de amor
deveriam ser abertas
com os dentes.

24 de fev. de 2008

Humberto Maturana


Humberto Maturana

Não me imponha o que você sabe;
quero explorar o desconhecido,
e ser a origem das minhas próprias descobertas.
Que o seu saber seja minha liberdade, não minha escravidão.
O mundo de sua verdade pode ser minha limitação;
sua sabedoria, minha negação.
Não me instrua; vamos caminhar juntos.
Deixe que minha riqueza comece onde a sua termina.
Mostre-se a mim, de maneira que eu possa
subir em cima dos seus ombros, e ver mais longe.
Revele-se para que eu possa ser
alguma coisa diferente.
Você crê que todo ser humano
pode amar e criar;
Compreendo, por isso, seu medo,
quando lhe peço que deixe-me viver de acordo com minha sabedoria.
Você nunca saberá quem eu sou,
se escutar apenas a si mesmo.
Não me instrua; deixe-me ser;
seu fracasso é que eu seja idêntico a você.


(Humberto Maturana, biólogo chileno )
Foto: Não sei de quem é a autoria

Rosa de Hiroshima


Vinícius de Morais

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada


Foto: fall in

Autopsicografia

Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


Foto: de um filme mudo de Armindo Dias




Fala do velho do restelo ao astronauta


José Saramago

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição
Foto: ruins of seaside #5 de moonchild

Poema à boca fechada

José Saramago

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.




(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)
Foto: Pedaços de infância de Henrique de Jesus

23 de fev. de 2008

Eu...


Florbela Espanca


Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!


Foto: a walk #4 do acervo de Moonchild

Sonhos


Florbela Espanca


Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir...
Que se sonhasse a chorar...
Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca... um lamento...
Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte
Despedaçar esses laços!...
...É pior que ter um filho

Que nos morresse nos braços!


Foto: In bed de poozcard

Poetas



Florbela Espanca



Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender por poetas

E eu arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma para sentir
A dos poetas também!

Amar


Florbela Espanca


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
mais este e aquele, o outro e a toda gente...
Amar! Amar!
E não amar ninguém! recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,

Que eu saiba me perder... pra te encontrar..


Foto: Bright side

Um Homem Pessimista



Bertolt Brecht

Um homem pessimista
É tolerante.
Ele sabe deixar a fina cortesia desmanchar-se na língua
Quando um homem não espanca uma mulher
E o sacrifício de uma mulher que prepara café para seu amado
Com pernas brancas sob a camisa –
Isto o comove.
Os remorsos de um homem que
Vendeu o amigo
Abalam-no, a ele que conhece a frieza do mundo
E como é sábio
Falar alto e convencido
No meio da noite.



Foto: Big Brother is watching YOU de Mario Pereira



Do que se necessita para a felicidade?


Mi Kell A Boldogsághoz

Posto assim,
não muito:
dois seres,
uma garrafa de vinho,
queijo do país,
sal, pão,
um quarto,
uma janela e uma porta,
lá fora, que chova,
chuva de longos fios,
e claro, cigarros.
Mas, ainda assim, de muitas noites
apenas uma o duas vezes resulta,
como os grandes poemas de grandes poetas.
O mais é preparatório,
ou epílogo,
dor de cabeça,
ou espasmo de riso,
não se pode, mas deve-se,
é demasiado, mas insuficiente.

versão de JLBG e Juan Carlos Mellidez
a partir da tradução castelhana de György Ferdinandy,

Maria Teresa Reyes-Cortés e Jesús Tomé

Foto: ..praserfeliz..de Isabel Cristina Braz

Inconfesso Desejo


Carlos Drumond de Andrade

Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo.


Foto: let's stay together de Paulo Franco




Homem absurdo

Alberto Camus

"A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas.
Ele percorre, armazena e queima os rostos calorosos ou maravilhados.
O tempo caminha com ele.
O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. "

Foto: Pormenor citadino #2 de Pedro Olivença

Camus


Alberto Camus


"A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente"


"Não há amor generoso senão aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular."


Foto: Road



Alberto Camus

Alberto Camus

“Eu amo a vida,
eis a minha verdadeira fraqueza.
Amo-a tanto,que não tenho
nenhuma imaginação
para o que não for vida.”
Foto: de Karina Bertoncini

Camus

Alberto Camus

"Os tristes têm duas razões para o ser: ignoram ou esperam"
Foto: Blind of one eye

22 de fev. de 2008

Não entendo...


Clarice Lispector

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."


Foto: Another delivery to Purl Diva de looseends

Como tratar o que se tem

Clarice Lispector

"Existe um ser que mora em mim como se fosse casa sua, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer ou de cólera."

in "A Descoberta do Mundo" Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1999
Foto: Do Céu desceram à Terra. Eu... queria chegar Lá! de Fátima Silveira

Uma Revolta

Clarice Lispector

"Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa."

In "A Descoberta do Mundo" Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1999
Foto: Um caminho....de Yosef

Minha alma tem o peso da luz

Clarice Lispector
Minha alma tem o peso da luz.
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita,
prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da SOLIDÃO
no meio de outros."

Foto: Rock'n Roll Forever de José Eduardo
Poesia enviada ao meu orkut pela minha amiga Priscila Prisca

Soneto I

Paulo Bonfim

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias,
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.


Retenho dentro da alma, preso à quilha,
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...

Venho de longe a contornar a esmo
O cabo das tormentas de mim mesmo


De:O Livro dos Sonetos
(Extraído de "Transfiguração"-1951)


Foto: at seaside #3 da galeira de Moonchild
Poesia enviada por minha amiga Simone Rossi

Helena Roosevelt


Helena Roosevelt


"Ninguém pode fazer você se sentir inferior
sem o seu consentimento"


Foto: Menina dos olhos tristes de Victor Melo

Einstein

Albert Einstein

"A mente que se abre para um nova idéia,
jamais voltará ao seu tamanho original.”


Foto: "Erotismo escondido na natureza" de Fátima silveira

21 de fev. de 2008

Esquecimento

Florbela Espanca

Esse de quem eu era e era meu
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,
foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desse que era meu já não me lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos...!

Foto: a walk #1 de moonchild1111


Escolha

Elisa Lucinda

Eu te amo como um colibri resistente
incansável beija-flor que sou
batedora renitente de asas
viciada no mel que me dás depois que atravesso o deserto.
Pingas na minha boca umas gotas poucas
do que nem é uma vacina.
Eu uma mulher, uma ave, uma menina...
Assim chacinas o meu tempo de eremita:
quebras a bengala onde me apoiei, rasgas minhas meias
as que vestiram meus pés
quando caminhei as areias.
Eu te amo como quem esquece tudo
diante de um beijo
as inúmeras horas desbeijadas
os terríveis desabraços
os dolorosos desencaixes
que meu corpo sofreu longe do seu.
Elejo sempre o encontro.
Ele é o ponto do crochê.
Penélope invertida
nada começo de novo
nada desmancho
nada volto.

Teço um novo tecido de amor eterno
a cada olhar seu de afeto
não ligo para nada que doeu.
Só para o que deixou de doer tenho olhos.
Cega do infortúnio
pesco os peixes dos nossos encaixes
pesco as gozadas
as confissões de amor
as palavras fundas de prazer
as esculturas astecas que nos fixam
na história dos dias.
Eu te amo.
De todos os nossos montes
fico com as encostas.
De todas as nossas indagações
fico com as respostas.
De todas as nossas destilarias
fico com as alegrias.
De todos os nossos natais
fico com as bonecas.
De todos os nossos cardumes
as moquecas।

Foto: Serenidade de Hugo Félix

Há coisas bonitas na vida

Letícia Thompson

"Bonitas são as coisas vindas do interior,
as palavras simples, sinceras e significativas.
Bonito é o sorriso que vem de dentro,
o brilho dos olhos...
Bonito é o dia de sol depois da noite chuvosa
ou as noites enluaradas de verão
em que todos saem de casa.
Bonito é procurar estrelas no céu
e dar de presente ao amigo, amiga, namorado...
Bonito é achar a poesia do vento,
das flores e das crianças.
Bonito é chorar quando se sentir vontade
e deixar que as lágrimas rolem
sem vergonha ou medo de crítica.
Bonito é gostar da vida e viver do sonho.
Bonito é ser realista sem ser cruel,
é acreditar na beleza de todas as coisas.
Bonito é a gente continuar sendo
gente em quaisquer situações.
Bonito é você ser você।"

Foto: de Guilherme Limas

Bilhete

Mário Quitana
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

Foto: silhouette #2 galeria de de moonchild

12 de fev. de 2008

MOTIVO

Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


Foto: autumn scene #2

Fernando Pessoa


"Quer pouco, terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos."

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade


"Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos"

Foto: Bengalas Citadinas de Daniel Oliveira

7 de fev. de 2008

Do sentimento trágico da vida


Natália Correia

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Foto: só de Rui Vale de Sousa

4 de fev. de 2008

Folhas De Rosa


Florbela Espanca

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo …

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente…
Pouco a pouco o perfume de outrora
Flutua em volta delas, docemente …

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado…

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia…

2 de fev. de 2008

Metade


Osvaldo Montenegro


Que a força do medo que tenho,
Não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito,
Não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que eu ouço ao longe seja linda,
Ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada,
Mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida,
E a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas
Como uma prece, nem repetidas com fervor.
Apenas sejam respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem
Inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço,
Mas a outra metade é o que eu calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corrói por dentro,
Seja uma dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso
E a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste,
Que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso
Que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que eu fui,
E a outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais
Do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo,
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
Mesmo que ela não saiba,
E que ninguém a tente complicar,
Porque é preciso simplicidade
Para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a platéia
E a outra metade, a canção.

E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é AMOR
E a outra metade...TAMBÉM!

Foto: plastic wind de Diaarte
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